Clandestina felicidade (Brasil, 1998 - curta metragem - 35mm - ficção - 15 minutos - P&B)
Fragmentos de infância, descoberta do mundo pelo olhar curioso, perplexo e profundo da criança-escritora Clarice Lispector, a menina ucraniana que descobriu no Recife a felicidade clandestina, tornando-se uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos.
Direção: Beto Normal e Marcelo Gomes
Elenco: Luisa Phebo, Nathalia Corinthia, Luci Alcântara
CLANDESTINA FELICIDADE
Por Renata Marques
Produzido pela Parabólica Brasil, “Clandestina Felicidade” (1998) de Beto Normal e Marcelo Gomes é uma livre adaptação dos contos autobiográficos “Felicidade Clandestina” e “Restos de Carnaval”, ambos de Clarice Lispector. No curta de 15 minutos e rodado em formato 35mm, é contada a estória de Clarice com seus, aproximadamente, 10 anos, sua diferente percepção sobre o mundo já na infância, sua curiosidade de menina, sua personalidade intensa e sua paixão pela leitura. Aborda ainda uma época de transição na vida da autora e as armações de sua amiga Reveca para não lhe emprestar um livro. O aspecto biográfico do filme fica explícito nas cores que foram utilizadas, ou melhor, na ausência delas: o preto&branco dá um tom de memória às imagens. O curta se inicia com uma imagem do Recife Antigo e uma passagem de tempo: primeiramente, um portão de Igreja e um carro moderno que passa à sua frente, então, após um homem atravessar sua calçada, é a vez de um carro de época passar e cruzar-se com Clarice menina pulando amarelinha. Esse fato ilustra bem o que se percebe ao longo de todo o filme; mais do que pano de fundo, o Recife tem a importância de um personagem na estória, assim como teve, de fato, na vida da autora. Outro aspecto relevante dessa primeira cena é o olhar da menina diretamente voltado para a câmera, esse fato se repetirá algumas vezes, ora sem diálogo, ora utilizando-se deste, o que enfatiza essa peculiar interação. Além de mostrar o dia-a-dia, a sua boa relação com a família, a sua frustração pela publicação no jornal de estórias bobas (contos de fadas) ao invés das suas estórias não-convencionais sobre “coisas que vinham na sua cabeça” e a sua vontade de escrever “um livro que não acaba nunca” quando crescer, a estória tem como principal conflito a “tortura” a qual Clarice é submetida por Reveca em função do livro “Reinações de Narizinho”. O clímax acontece no momento em que a protagonista, após perder a mãe, recebe de seu pai a notícia da mudança para o Rio de Janeiro. Esse fato a deixa aflita com a possibilidade de não conseguir ler o livro e provoca a reviravolta no filme quando a menina vai à casa de Reveca tentar pegar o “objeto do seu desejo” e percebe que foi enganada por todo o tempo com desculpas esfarrapadas; é aí que a mãe de Reveca reverte a situação emprestando-lhe não só aquele livro, mas qualquer outro que queira. Por fim, Clarice se vê com o livro em mãos, segurando-o, com um sorriso nos lábios, como uma grande conquista. Lê a obra degustando página por página, linha por linha e transpirando felicidade plena. Outra cena de valor relevante é a que mostra a antes alegre menina, agora aflita pela sua saúde de sua mãe em meio a um bloco de carnaval onde todos se divertiam alheios à sua tristeza ao som de um frevo alternado com uma batida firme de tambores, como uma marcha fúnebre. Neste trecho e em todo o curta, a presença da trilha sonora mostra-se um componente de grande importância, além da iluminação e da fotografia, ambas excelentes. Um momento que reúne perfeitamente todos esses aspectos é a cena na biblioteca, onde Clarice, ao som de “Somewhere over the Rainbow”, protagoniza uma cena que emana emoção, demonstrando a fascinação que os livros produziam nela. No filme, há ainda referências de outras obras da autora: a existência de uma personagem chamada Macabéa (protagonista de “A hora da estrela”); imagens de aves e ovos que podem remeter a “O ovo e a galinha” (também publicado na coletânea “Felicidade Clandestina”); e ainda tantas outras frases e idéias que foram escritas pela autora em outras obras. Em suma, “Clandestina Felicidade” é uma mistura de alguns dos muitos bons momentos da obra de Clarice Lispector que, inevitavelmente, deu certo.
CLANDESTINA FELICIDADE
Por Maria Cecília Hunka
O curta “Clandestina Felicidade”, dos diretores Beto Normal e Marcelo Gomes, é baseado nos contos “Felicidade Clandestina” e “Restos de Carnaval”, que retratam fatos da infância de Clarice Lispector no Recife. Esse foi uma das primeiras obras de Marcelo Gomes, cineasta de Cinema, aspirinas e urubus. Se trata de uma livre interpretação desses contos, tendo 14 minutos de duração.
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, numa aldeia de nome complicado: Tchetchenillk, no ano de 1925. Os Lispector emigraram da Rússia para o Brasil no ano seguinte. Fixaram-se no Recife, onde a escritora passou a infância. Clarice tinha 12 anos e já era órfã de mãe quando a família mudou-se para o Rio de Janeiro. Felicidade clandestina, publicado pela primeira vez em 1971, reúne 25 contos que falam de infância, adolescência e família, mas relatam, acima de tudo, as angústias da alma. Como é comum na obra de Clarice Lispector, a descrição dos ambientes e das personagens perde importância para a revelação de sentimentos mais profundos. Essa obra possui os dois contos em que é baseado esse curta.
A montagem do curta de forma fiel aos contos é bastante complicada, pois cada um deles tem uma conclusão, porém a mesma se torna possível pelo fato de ambos mostrarem a facilidade que a menina Clarice tem de encontrar felicidade nas coisas pequenas da vida. O curta procura expressar em diálogos e imagens todos os sentimentos expressos nos textos, o que pode ser bem interpretado por um espectador que já tenha lido os contos, mas também abre um grande leque interpretativo para o espectador leigo.
Em Clandestina Felicidade há diversas passagens que não foram tiradas dos contos, o que mostra que houve um estudo sobre a vida e a obra da escritora/personagem para a produção do roteiro. Os diretores se abstêm dos pensamentos e inserções narrativas, explorando apenas diálogos, havendo também o acréscimo de cenas, o que é válido, pois, apesar do aumento de informações, não é causado desvio da atenção do espectador do objetivo principal do texto. O curta difere um pouco dos contos no seu conceito primário, levando a uma construção diferenciada. Analisando-se mais profundamente a sua construção, nota-se que em seu roteiro há a predominância de elementos do texto “Felicidade Clandestina”, pois é ele que retrata melhor os sentimentos de Clarice diante do mundo e seu amor pela leitura, assumindo o conto “Restos de Carnaval” menos destaque.
Ao mesmo tempo em que retrata a infância da escritora, faz um passeio pela cidade do Recife, mostrando suas ruas e carnaval, mostrando o seu encantamento e o fascínio que despertava na menina que tinha, como um dos seus sonhos, participar daquela festa belíssima fantasiada. O diretor deixa a câmera solta, passando despercebida, deixando o curta com um aspecto bem simples e levando o espectador a viajar pelas memórias de Clarice como se fossem suas próprias memórias, havendo essa integração forte, onde se pode sentir a dor de Clarice cada vez que ela ia a casa da amiga perguntar sobre o livro, ou sua alegria quando a mãe da menina colocou todos os livros da biblioteca a sua disposição.
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