Blog literário
Esperamos que este espaço recém inaugurado sirva para aproximar estudantes de letras interessados em literatura. Fugindo do convencional, este blog propõe uma metodologia diferenciada para atrair alunos do ensino médio.
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
Transcrição do Conto "Felicidade Clandestina"
*** Felicidade clandestina Clarice Lispector Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade". Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu nao vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte"com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. As vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. As vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. ***
Perguntas instigadoras sobre o texto
1) Em Felicidade Clandestina a personagem narradora ficou encantada e bastante alegre ao saber que a filha do dono da livraria lhe emprestaria o livro As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Diante de tal felicidade a menina declara: "eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam". O que ela quis dizer ao usar esta expressão?
2) Por que a garota nunca desistia de conseguir o livro emprestado mesmo percebendo o plano da filha do dono da livraria?
3) Mesmo tendo os privilégios que toda criança queria ter, a menina continuava a não querer emprestar o livro para as outras meninas. Como pode ser analisado este comportamento da criança?
4) Por que mesmo depois de ter o livro "as reinações de narizinho" em suas mãos a criança não fez o que havia planejado, que seria devorá-lo em pouco tempo? De que forma a "felicidade" pode ser entendida neste sentido?
2) Por que a garota nunca desistia de conseguir o livro emprestado mesmo percebendo o plano da filha do dono da livraria?
3) Mesmo tendo os privilégios que toda criança queria ter, a menina continuava a não querer emprestar o livro para as outras meninas. Como pode ser analisado este comportamento da criança?
4) Por que mesmo depois de ter o livro "as reinações de narizinho" em suas mãos a criança não fez o que havia planejado, que seria devorá-lo em pouco tempo? De que forma a "felicidade" pode ser entendida neste sentido?
Analise do texto (quanto à temática, à estetica e à tensão texto-contexto)
Uma das características das obras de Clarice Lispector se dá para um fluxo da consciência. Despreza o enredo lógico, as peripécias, a trama episódica. Misturam, na maioria das vezes, narradores diversos, espécies de alter-egos da autora.
A entronização literária de Clarice Lispector ocorre junto com o início do Terceiro Tempo do Modernismo (1945-1970). Trata-se de um período muito criativo, de experimentalismos e pesquisa estética.
O conto “Felicidade Clandestina” é um dos 25 que compõe o livro que tem por título o nome do conto, escrito por Clarice Lispector, e publicado em 1971, redigido em primeira pessoa, retrata momentos da infância da autora. A felicidade almejada pela menina no conto está a todo o momento subordinada a oportunidade de acesso ao livro. Por estar em busca de algo que a complete, essa felicidade se torna clandestina a partir do momento que ela deseja ter o que não possui, permitindo que a outra menina a manipule.
Conto de fundo autobiográfico, em que a narradora relembra sua infância no Recife, ela era apaixonada pela leitura, mas, por ser de família pobre, suas condições financeiras não eram suficientes para comprar livros, então ela vivia pedindo-os emprestados para uma menina que era filha do dono de uma livraria. Essa menina não gostava de ler, era gorda, baixa, sardenta, enfim, de aparência esteticamente feia, se sentia inferior as outras meninas.
Essa foi a felicidade clandestina da menina. Fazia questão de “esquecer” que estava com o livro para depois ter a “surpresa” de achá-lo. “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.”
Neste conto, Lispector dá ênfase, de forma subliminar, ao amor pela leitura e ao apego, que aos olhos da massa se torna exagerado. Para aquela menina se tornara uma semelhança de uma mulher com seu amante.
A entronização literária de Clarice Lispector ocorre junto com o início do Terceiro Tempo do Modernismo (1945-1970). Trata-se de um período muito criativo, de experimentalismos e pesquisa estética.
O conto “Felicidade Clandestina” é um dos 25 que compõe o livro que tem por título o nome do conto, escrito por Clarice Lispector, e publicado em 1971, redigido em primeira pessoa, retrata momentos da infância da autora. A felicidade almejada pela menina no conto está a todo o momento subordinada a oportunidade de acesso ao livro. Por estar em busca de algo que a complete, essa felicidade se torna clandestina a partir do momento que ela deseja ter o que não possui, permitindo que a outra menina a manipule.
Conto de fundo autobiográfico, em que a narradora relembra sua infância no Recife, ela era apaixonada pela leitura, mas, por ser de família pobre, suas condições financeiras não eram suficientes para comprar livros, então ela vivia pedindo-os emprestados para uma menina que era filha do dono de uma livraria. Essa menina não gostava de ler, era gorda, baixa, sardenta, enfim, de aparência esteticamente feia, se sentia inferior as outras meninas.
Essa foi a felicidade clandestina da menina. Fazia questão de “esquecer” que estava com o livro para depois ter a “surpresa” de achá-lo. “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.”
Neste conto, Lispector dá ênfase, de forma subliminar, ao amor pela leitura e ao apego, que aos olhos da massa se torna exagerado. Para aquela menina se tornara uma semelhança de uma mulher com seu amante.
Intertextualidade
Clandestina felicidade (Brasil, 1998 - curta metragem - 35mm - ficção - 15 minutos - P&B)
Fragmentos de infância, descoberta do mundo pelo olhar curioso, perplexo e profundo da criança-escritora Clarice Lispector, a menina ucraniana que descobriu no Recife a felicidade clandestina, tornando-se uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos.
Direção: Beto Normal e Marcelo Gomes
Elenco: Luisa Phebo, Nathalia Corinthia, Luci Alcântara
CLANDESTINA FELICIDADE
Por Renata Marques
Produzido pela Parabólica Brasil, “Clandestina Felicidade” (1998) de Beto Normal e Marcelo Gomes é uma livre adaptação dos contos autobiográficos “Felicidade Clandestina” e “Restos de Carnaval”, ambos de Clarice Lispector. No curta de 15 minutos e rodado em formato 35mm, é contada a estória de Clarice com seus, aproximadamente, 10 anos, sua diferente percepção sobre o mundo já na infância, sua curiosidade de menina, sua personalidade intensa e sua paixão pela leitura. Aborda ainda uma época de transição na vida da autora e as armações de sua amiga Reveca para não lhe emprestar um livro. O aspecto biográfico do filme fica explícito nas cores que foram utilizadas, ou melhor, na ausência delas: o preto&branco dá um tom de memória às imagens. O curta se inicia com uma imagem do Recife Antigo e uma passagem de tempo: primeiramente, um portão de Igreja e um carro moderno que passa à sua frente, então, após um homem atravessar sua calçada, é a vez de um carro de época passar e cruzar-se com Clarice menina pulando amarelinha. Esse fato ilustra bem o que se percebe ao longo de todo o filme; mais do que pano de fundo, o Recife tem a importância de um personagem na estória, assim como teve, de fato, na vida da autora. Outro aspecto relevante dessa primeira cena é o olhar da menina diretamente voltado para a câmera, esse fato se repetirá algumas vezes, ora sem diálogo, ora utilizando-se deste, o que enfatiza essa peculiar interação. Além de mostrar o dia-a-dia, a sua boa relação com a família, a sua frustração pela publicação no jornal de estórias bobas (contos de fadas) ao invés das suas estórias não-convencionais sobre “coisas que vinham na sua cabeça” e a sua vontade de escrever “um livro que não acaba nunca” quando crescer, a estória tem como principal conflito a “tortura” a qual Clarice é submetida por Reveca em função do livro “Reinações de Narizinho”. O clímax acontece no momento em que a protagonista, após perder a mãe, recebe de seu pai a notícia da mudança para o Rio de Janeiro. Esse fato a deixa aflita com a possibilidade de não conseguir ler o livro e provoca a reviravolta no filme quando a menina vai à casa de Reveca tentar pegar o “objeto do seu desejo” e percebe que foi enganada por todo o tempo com desculpas esfarrapadas; é aí que a mãe de Reveca reverte a situação emprestando-lhe não só aquele livro, mas qualquer outro que queira. Por fim, Clarice se vê com o livro em mãos, segurando-o, com um sorriso nos lábios, como uma grande conquista. Lê a obra degustando página por página, linha por linha e transpirando felicidade plena. Outra cena de valor relevante é a que mostra a antes alegre menina, agora aflita pela sua saúde de sua mãe em meio a um bloco de carnaval onde todos se divertiam alheios à sua tristeza ao som de um frevo alternado com uma batida firme de tambores, como uma marcha fúnebre. Neste trecho e em todo o curta, a presença da trilha sonora mostra-se um componente de grande importância, além da iluminação e da fotografia, ambas excelentes. Um momento que reúne perfeitamente todos esses aspectos é a cena na biblioteca, onde Clarice, ao som de “Somewhere over the Rainbow”, protagoniza uma cena que emana emoção, demonstrando a fascinação que os livros produziam nela. No filme, há ainda referências de outras obras da autora: a existência de uma personagem chamada Macabéa (protagonista de “A hora da estrela”); imagens de aves e ovos que podem remeter a “O ovo e a galinha” (também publicado na coletânea “Felicidade Clandestina”); e ainda tantas outras frases e idéias que foram escritas pela autora em outras obras. Em suma, “Clandestina Felicidade” é uma mistura de alguns dos muitos bons momentos da obra de Clarice Lispector que, inevitavelmente, deu certo.
CLANDESTINA FELICIDADE
Por Maria Cecília Hunka
O curta “Clandestina Felicidade”, dos diretores Beto Normal e Marcelo Gomes, é baseado nos contos “Felicidade Clandestina” e “Restos de Carnaval”, que retratam fatos da infância de Clarice Lispector no Recife. Esse foi uma das primeiras obras de Marcelo Gomes, cineasta de Cinema, aspirinas e urubus. Se trata de uma livre interpretação desses contos, tendo 14 minutos de duração.
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, numa aldeia de nome complicado: Tchetchenillk, no ano de 1925. Os Lispector emigraram da Rússia para o Brasil no ano seguinte. Fixaram-se no Recife, onde a escritora passou a infância. Clarice tinha 12 anos e já era órfã de mãe quando a família mudou-se para o Rio de Janeiro. Felicidade clandestina, publicado pela primeira vez em 1971, reúne 25 contos que falam de infância, adolescência e família, mas relatam, acima de tudo, as angústias da alma. Como é comum na obra de Clarice Lispector, a descrição dos ambientes e das personagens perde importância para a revelação de sentimentos mais profundos. Essa obra possui os dois contos em que é baseado esse curta.
A montagem do curta de forma fiel aos contos é bastante complicada, pois cada um deles tem uma conclusão, porém a mesma se torna possível pelo fato de ambos mostrarem a facilidade que a menina Clarice tem de encontrar felicidade nas coisas pequenas da vida. O curta procura expressar em diálogos e imagens todos os sentimentos expressos nos textos, o que pode ser bem interpretado por um espectador que já tenha lido os contos, mas também abre um grande leque interpretativo para o espectador leigo.
Em Clandestina Felicidade há diversas passagens que não foram tiradas dos contos, o que mostra que houve um estudo sobre a vida e a obra da escritora/personagem para a produção do roteiro. Os diretores se abstêm dos pensamentos e inserções narrativas, explorando apenas diálogos, havendo também o acréscimo de cenas, o que é válido, pois, apesar do aumento de informações, não é causado desvio da atenção do espectador do objetivo principal do texto. O curta difere um pouco dos contos no seu conceito primário, levando a uma construção diferenciada. Analisando-se mais profundamente a sua construção, nota-se que em seu roteiro há a predominância de elementos do texto “Felicidade Clandestina”, pois é ele que retrata melhor os sentimentos de Clarice diante do mundo e seu amor pela leitura, assumindo o conto “Restos de Carnaval” menos destaque.
Ao mesmo tempo em que retrata a infância da escritora, faz um passeio pela cidade do Recife, mostrando suas ruas e carnaval, mostrando o seu encantamento e o fascínio que despertava na menina que tinha, como um dos seus sonhos, participar daquela festa belíssima fantasiada. O diretor deixa a câmera solta, passando despercebida, deixando o curta com um aspecto bem simples e levando o espectador a viajar pelas memórias de Clarice como se fossem suas próprias memórias, havendo essa integração forte, onde se pode sentir a dor de Clarice cada vez que ela ia a casa da amiga perguntar sobre o livro, ou sua alegria quando a mãe da menina colocou todos os livros da biblioteca a sua disposição.
Fragmentos de infância, descoberta do mundo pelo olhar curioso, perplexo e profundo da criança-escritora Clarice Lispector, a menina ucraniana que descobriu no Recife a felicidade clandestina, tornando-se uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos.
Direção: Beto Normal e Marcelo Gomes
Elenco: Luisa Phebo, Nathalia Corinthia, Luci Alcântara
CLANDESTINA FELICIDADE
Por Renata Marques
Produzido pela Parabólica Brasil, “Clandestina Felicidade” (1998) de Beto Normal e Marcelo Gomes é uma livre adaptação dos contos autobiográficos “Felicidade Clandestina” e “Restos de Carnaval”, ambos de Clarice Lispector. No curta de 15 minutos e rodado em formato 35mm, é contada a estória de Clarice com seus, aproximadamente, 10 anos, sua diferente percepção sobre o mundo já na infância, sua curiosidade de menina, sua personalidade intensa e sua paixão pela leitura. Aborda ainda uma época de transição na vida da autora e as armações de sua amiga Reveca para não lhe emprestar um livro. O aspecto biográfico do filme fica explícito nas cores que foram utilizadas, ou melhor, na ausência delas: o preto&branco dá um tom de memória às imagens. O curta se inicia com uma imagem do Recife Antigo e uma passagem de tempo: primeiramente, um portão de Igreja e um carro moderno que passa à sua frente, então, após um homem atravessar sua calçada, é a vez de um carro de época passar e cruzar-se com Clarice menina pulando amarelinha. Esse fato ilustra bem o que se percebe ao longo de todo o filme; mais do que pano de fundo, o Recife tem a importância de um personagem na estória, assim como teve, de fato, na vida da autora. Outro aspecto relevante dessa primeira cena é o olhar da menina diretamente voltado para a câmera, esse fato se repetirá algumas vezes, ora sem diálogo, ora utilizando-se deste, o que enfatiza essa peculiar interação. Além de mostrar o dia-a-dia, a sua boa relação com a família, a sua frustração pela publicação no jornal de estórias bobas (contos de fadas) ao invés das suas estórias não-convencionais sobre “coisas que vinham na sua cabeça” e a sua vontade de escrever “um livro que não acaba nunca” quando crescer, a estória tem como principal conflito a “tortura” a qual Clarice é submetida por Reveca em função do livro “Reinações de Narizinho”. O clímax acontece no momento em que a protagonista, após perder a mãe, recebe de seu pai a notícia da mudança para o Rio de Janeiro. Esse fato a deixa aflita com a possibilidade de não conseguir ler o livro e provoca a reviravolta no filme quando a menina vai à casa de Reveca tentar pegar o “objeto do seu desejo” e percebe que foi enganada por todo o tempo com desculpas esfarrapadas; é aí que a mãe de Reveca reverte a situação emprestando-lhe não só aquele livro, mas qualquer outro que queira. Por fim, Clarice se vê com o livro em mãos, segurando-o, com um sorriso nos lábios, como uma grande conquista. Lê a obra degustando página por página, linha por linha e transpirando felicidade plena. Outra cena de valor relevante é a que mostra a antes alegre menina, agora aflita pela sua saúde de sua mãe em meio a um bloco de carnaval onde todos se divertiam alheios à sua tristeza ao som de um frevo alternado com uma batida firme de tambores, como uma marcha fúnebre. Neste trecho e em todo o curta, a presença da trilha sonora mostra-se um componente de grande importância, além da iluminação e da fotografia, ambas excelentes. Um momento que reúne perfeitamente todos esses aspectos é a cena na biblioteca, onde Clarice, ao som de “Somewhere over the Rainbow”, protagoniza uma cena que emana emoção, demonstrando a fascinação que os livros produziam nela. No filme, há ainda referências de outras obras da autora: a existência de uma personagem chamada Macabéa (protagonista de “A hora da estrela”); imagens de aves e ovos que podem remeter a “O ovo e a galinha” (também publicado na coletânea “Felicidade Clandestina”); e ainda tantas outras frases e idéias que foram escritas pela autora em outras obras. Em suma, “Clandestina Felicidade” é uma mistura de alguns dos muitos bons momentos da obra de Clarice Lispector que, inevitavelmente, deu certo.
CLANDESTINA FELICIDADE
Por Maria Cecília Hunka
O curta “Clandestina Felicidade”, dos diretores Beto Normal e Marcelo Gomes, é baseado nos contos “Felicidade Clandestina” e “Restos de Carnaval”, que retratam fatos da infância de Clarice Lispector no Recife. Esse foi uma das primeiras obras de Marcelo Gomes, cineasta de Cinema, aspirinas e urubus. Se trata de uma livre interpretação desses contos, tendo 14 minutos de duração.
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, numa aldeia de nome complicado: Tchetchenillk, no ano de 1925. Os Lispector emigraram da Rússia para o Brasil no ano seguinte. Fixaram-se no Recife, onde a escritora passou a infância. Clarice tinha 12 anos e já era órfã de mãe quando a família mudou-se para o Rio de Janeiro. Felicidade clandestina, publicado pela primeira vez em 1971, reúne 25 contos que falam de infância, adolescência e família, mas relatam, acima de tudo, as angústias da alma. Como é comum na obra de Clarice Lispector, a descrição dos ambientes e das personagens perde importância para a revelação de sentimentos mais profundos. Essa obra possui os dois contos em que é baseado esse curta.
A montagem do curta de forma fiel aos contos é bastante complicada, pois cada um deles tem uma conclusão, porém a mesma se torna possível pelo fato de ambos mostrarem a facilidade que a menina Clarice tem de encontrar felicidade nas coisas pequenas da vida. O curta procura expressar em diálogos e imagens todos os sentimentos expressos nos textos, o que pode ser bem interpretado por um espectador que já tenha lido os contos, mas também abre um grande leque interpretativo para o espectador leigo.
Em Clandestina Felicidade há diversas passagens que não foram tiradas dos contos, o que mostra que houve um estudo sobre a vida e a obra da escritora/personagem para a produção do roteiro. Os diretores se abstêm dos pensamentos e inserções narrativas, explorando apenas diálogos, havendo também o acréscimo de cenas, o que é válido, pois, apesar do aumento de informações, não é causado desvio da atenção do espectador do objetivo principal do texto. O curta difere um pouco dos contos no seu conceito primário, levando a uma construção diferenciada. Analisando-se mais profundamente a sua construção, nota-se que em seu roteiro há a predominância de elementos do texto “Felicidade Clandestina”, pois é ele que retrata melhor os sentimentos de Clarice diante do mundo e seu amor pela leitura, assumindo o conto “Restos de Carnaval” menos destaque.
Ao mesmo tempo em que retrata a infância da escritora, faz um passeio pela cidade do Recife, mostrando suas ruas e carnaval, mostrando o seu encantamento e o fascínio que despertava na menina que tinha, como um dos seus sonhos, participar daquela festa belíssima fantasiada. O diretor deixa a câmera solta, passando despercebida, deixando o curta com um aspecto bem simples e levando o espectador a viajar pelas memórias de Clarice como se fossem suas próprias memórias, havendo essa integração forte, onde se pode sentir a dor de Clarice cada vez que ela ia a casa da amiga perguntar sobre o livro, ou sua alegria quando a mãe da menina colocou todos os livros da biblioteca a sua disposição.
Cenas biográficas da autora
O indizível segundo Clarice
( Clarice Lispector )
Revista E, n.º 71, SESC.
Evento no Consolação e espetáculo de teatro no Belenzinho abordam a obra daquela que é considerada uma das mais intensas e perturbadoras escritoras brasileiras, Clarice Lispector
O destino parecia reservar a Clarice Lispector uma vida que, de longe, poderia se parecer com a de qualquer outra mulher de sua época. Casou-se, teve filhos, seguia o marido em suas mudanças de país devido à profissão de diplomata. É certo que poucas mulheres chegavam à faculdade naqueles dias. Ainda mais no curso de Direito, habitat prioritariamente formado por cavalheiros. E ela chegou. Separar-se do marido também era coisa rara. E ela o fez. Porém, novamente, de longe, nada tão incomum. Entretanto, é de Clarice Lispector que estamos falando. E é de perto que se percebe que ela não seria apenas uma mulher de sua época. De perto do coração selvagem dessa mulher que, quando colocava sua máquina de escrever sobre o colo e acendia um cigarro, escavava, romance a romance, sua entrada particular no hall das figuras que fizeram a diferença. Sua literatura tomou de assalto público e crítica e fez surgir um dos mais enigmáticos personagens do nosso País. "Clarice vivia a ficção em toda a sua plenitude", comenta a escritora Ana Miranda, autora do romance Clarice, no qual a transforma em protagonista. "Um dos seus aspectos mais interessantes é que ela era o seu personagem, ela mesma era a narradora. Quando a leio tenho a sensação de que estou ouvindo sua voz. A vida de Clarice e sua obra são quase o mesmo mundo. Ela era sempre Clarice."
( Clarice Lispector )
Revista E, n.º 71, SESC.
Evento no Consolação e espetáculo de teatro no Belenzinho abordam a obra daquela que é considerada uma das mais intensas e perturbadoras escritoras brasileiras, Clarice Lispector
O destino parecia reservar a Clarice Lispector uma vida que, de longe, poderia se parecer com a de qualquer outra mulher de sua época. Casou-se, teve filhos, seguia o marido em suas mudanças de país devido à profissão de diplomata. É certo que poucas mulheres chegavam à faculdade naqueles dias. Ainda mais no curso de Direito, habitat prioritariamente formado por cavalheiros. E ela chegou. Separar-se do marido também era coisa rara. E ela o fez. Porém, novamente, de longe, nada tão incomum. Entretanto, é de Clarice Lispector que estamos falando. E é de perto que se percebe que ela não seria apenas uma mulher de sua época. De perto do coração selvagem dessa mulher que, quando colocava sua máquina de escrever sobre o colo e acendia um cigarro, escavava, romance a romance, sua entrada particular no hall das figuras que fizeram a diferença. Sua literatura tomou de assalto público e crítica e fez surgir um dos mais enigmáticos personagens do nosso País. "Clarice vivia a ficção em toda a sua plenitude", comenta a escritora Ana Miranda, autora do romance Clarice, no qual a transforma em protagonista. "Um dos seus aspectos mais interessantes é que ela era o seu personagem, ela mesma era a narradora. Quando a leio tenho a sensação de que estou ouvindo sua voz. A vida de Clarice e sua obra são quase o mesmo mundo. Ela era sempre Clarice."
Bibliografia
http://www.vivaleitura.com.br/artigos.asp
www.gazetadopovo.com.br/.../conteudo.phtml?...Felicidade-Clandestina
www.passeiweb.com/.../felicidade_clandestina_livro
www.claricelispector.com.br/
intervox.nce.ufrj.br/~valdenit/felicida.htm
www.gazetadopovo.com.br/.../conteudo.phtml?...Felicidade-Clandestina
www.passeiweb.com/.../felicidade_clandestina_livro
www.claricelispector.com.br/
intervox.nce.ufrj.br/~valdenit/felicida.htm
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